Surpresas do som da voz na sessão de Musicoterapia
Artur Correia, Musicoterapeuta no Espaço Crescer • 21 de maio de 2025

Quando me pedem para escrever sobre musicoterapia, surge sempre a necessidade de comunicar o que é, qual o seu impacto, como se realiza, quais os benefícios, para que casos é eficaz, quem é o terapeuta, qual a sua formação, entre outros indicadores de informação e esclarecimento da prática profissional. 

Sempre que isso acontece, sinto que sou forçado a pôr de lado a dimensão da partilha do “como acontece com aquela pessoa, naquele momento”.

 

A divulgação da musicoterapia que temos vindo a realizar em Portugal – quer por colegas, quer pela nossa associação profissional – em formatos como workshops, encontros e sessões de sensibilização, demonstra que esta tem um grande impacto sempre que existe uma prática experiencial, isto é, a vivência subjetiva de quem nela participa.

 

O reconhecimento dos benefícios desta experiência e a sua aplicação em pessoas com diferentes necessidades físicas, emocionais, cognitivas e sociais – no sentido de facilitar o processo de comunicação e relação, promover vínculos psicoafetivos, estimular a socialização e explorar processos criativo–expressivos – têm encontrado evidências e ressonâncias no encaminhamento da musicoterapia, por parte de familiares, técnicos, clínicas e instituições.

 

A musicoterapia tem um impacto significativo na saúde mental, contribuindo para o tratamento do stress e da ansiedade, para a depressão, promovendo a regulação emocional, a autoestima e a autoexpressão, bem como o desenvolvimento de estratégias de coping. 

A prática de musicoterapia favorece, ainda, as relações interpessoais, estimulando o desenvolvimento de competências sociais, o fortalecimento de vínculos e de empatia e promovendo a inclusão e o sentimento de pertença. 

 

Adicionalmente, desempenha um papel essencial no desenvolvimento pessoal, permitindo a exploração da identidade e da expressão individual, o reforço da consciência corporal e emocional e servindo como mediador na prática de meditação e no autoconhecimento.

 

No que diz respeito à comunicação e à linguagem, a musicoterapia contribui para a melhoria comunicacional, oferecendo alternativas de expressão não verbal e apoiando o desenvolvimento da linguagem. 

 

No âmbito das funções cognitivas, estimula a memória e a atenção, promove a aquisição de novas competências de aprendizagem e fomenta a criatividade e o pensamento crítico. 

 

Por fim, no domínio motor, evidencia-se pela melhoria da coordenação, pela estimulação da mobilidade e da força, pelo apoio na reabilitação após AVC ou lesões neurológicas, pelo controlo da dor e pela promoção do relaxamento.

 

Recentrando este texto no “como acontece com aquela pessoa, naquele momento”, podemos obter uma diversidade de respostas – algumas com discurso verbal dos participantes, outras com aspetos não verbais, como é o caso de pessoas e crianças que apresentam graves limitações da linguagem. 

 

Isto deve-se ao facto de o ser humano estar sempre a comunicar!

Gostaria de partilhar convosco o caso de uma criança de 8 anos, Pedro (nome fictício), que apareceu na sessão ao colo da mãe, sem contacto visual, sem locomoção, com muitas limitações na verticalidade, e que passava o tempo a bater à própria cabeça, mordendo-se e a chorar. 

 

O estado de tensão e desconforto que nos demonstrava foi alterando aquando da escuta dos primeiros acordes da guitarra. Notei que ele não procurou de onde vinha o som e, aparentemente, não se mostrou interessado. 

Comecei por oferecer uma entoação vocal, tentando demonstrar a minha presença para que ele pudesse acompanhar o seu choro, ao mesmo tempo que possibilitava o contacto e a diferenciação, modulando a intensidade, a duração e a dinâmica, até que, subitamente, ficámos em silêncio. 

 

Algo aconteceu para ambos neste espaço. Ao longo das sessões, fomos construindo este lugar, como se uma folha em branco estivesse disponível para a criação de algo novo. 

Do choro, transitámos para os jogos sonoros prosódicos – dimensões acústicas da voz – e para os “ditongos”. E, quando menciono ditongos, refiro-me à representatividade da sua sonoridade no meu quadro conceptual de linguagem, pois o que se passava era a espontaneidade do organismo/som, em jogos de entoação e contacto com reverberações corporais. 

 

Ele colocava a mão na boca sempre que produzia o som “ou”, enquanto outras sonoridades, como “i”, iam intervalando. 

À medida que estes jogos se sucediam, nós íamos-nos encontrando e desencontrando. 

 

Numa sessão posterior, aproximou-se do local onde eu estava sentado a tocar a guitarra e encostou a cabeça na caixa. 

Algo aconteceu: deu-se conta da vibração da guitarra como algo externo e da sua própria voz como algo interior. Esta etapa subtil de diferenciação permitiu que entoássemos juntos, criando momentos de alternância. 

 

O choro transformou-se em ditongos, com intensidades e sonoridades variadas, transitando de um som longo para momentos com silêncios curtos (interrupções) que criaram possíveis bases para o ritmo e a sincronia. 

 

Agora dispomos de diferentes objetos de criação relacional, com os recursos expressivos existentes, integrados como gestalts, e seguimos em frente.

Daniel Stern, psicólogo do desenvolvimento, elaborou uma teoria sobre como o desenvolvimento humano emerge pelo processo de articulação entre a sensação de si mesmo (self sense) e a sensação do outro (sense of other) na relação. 

Em The Interpersonal World of the Infant (1985), Stern propõe que o desenvolvimento do self ocorre de forma progressiva e articulada, emergindo inicialmente de uma experiência sensorial e emocional muito básica e, à medida que o bebé interage com os outros, esse sentido de si vai-se tornando cada vez mais diferenciado e complexo.

 

Um aspeto fundamental do modelo de Stern é a sintonia afetiva (affect attunement), isto é, a capacidade do cuidador de responder aos sinais afetivos da criança através de variações de ritmo, tempo, intensidade e forma. Estas modulações subtis – aquilo a que Stern designa “afetos de vitalidade” – permitem à criança diferenciar vários estados internos e externos, construindo gradualmente um núcleo seguro.

 

De maneira semelhante, na música ocorre o mesmo: quando se experienciam variações dinâmicas nas frases musicais – mudanças de ritmo, dinâmica e contorno melódico – é possível evocar “gestalts” afetivas coerentes. Tal como uma criança aprende a reconhecer e a recordar a cadência tranquilizadora da voz do cuidador, o ouvinte pode perceber frases musicais curtas como expressões unificadas, imbuídas de significado emocional.

 

Este paralelo sugere que o mesmo processo que contribui para a formação do sentido de identidade de uma criança também pode estar em ação quando nos envolvemos numa relação musical.

 

Segundo Stern, os primeiros momentos de vida estão marcados pelo surgimento de diferentes “self sense” (tais como o self emergente, o self núcleo, o self subjetivo e o self verbal), que se desenvolvem em estreita relação com as interacções interpessoais e o ambiente social. Essa articulação contínua entre o self e o outro fundamenta a formação de uma identidade mais estruturada e integrada ao longo do tempo.

 

A partilha deste caso revela bem a importância de termos em conta as etapas do desenvolvimento propostas por Stern, que descreveu como a sensação de self, na qual se constroem as primeiras interacções do bebé com o mundo.

Esta teoria tem sido aplicada na área da musicoterapia para compreender como os processos de comunicação e expressão afetiva se desenvolvem e podem orientar o trabalho musicoterapêutico. 

 

Em linhas gerais, as etapas de desenvolvimento, segundo Stern, podem ser resumidas da seguinte forma:

 

  • Self Emergente (0–2 meses): Nesta fase inicial, o bebé vivencia sensações corporais e experiências sensoriais sem uma noção integrada de si mesmo. Em musicoterapia, o foco pode estar em estimular respostas sensoriais através de sons, ritmos e vibrações, ajudando o cliente a entrar em contacto com as suas próprias sensações.
  • Self Núcleo (2–6 meses): Aqui, o bebé começa a integrar as experiências sensoriais, percebendo um “centro” de existência. Na prática da musicoterapia, pode-se explorar atividades rítmicas e movimentos simples que promovem a sensação de presença e a regulação emocional, facilitando uma experiência mais coesa de si mesmo.
  • Self Subjetivo (6–9 meses): O bebé passa a reconhecer as suas intenções e sentimentos como distintos, desenvolvendo uma noção inicial de individualidade. Em musicoterapia, esta fase pode ser estimulada por meio da improvisação musical e da expressão afetiva, permitindo ao indivíduo experimentar e comunicar as suas emoções de forma mais pessoal e diferenciada.
  • Self Verbal (a partir dos 9 meses): Com o desenvolvimento da linguagem, o indivíduo passa a articular pensamentos e sentimentos de forma mais complexa e simbólica. Na musicoterapia, esta etapa pode ser acompanhada pelo uso de letras, canções estruturadas e pela integração de verbalizações que dialogam com a expressão musical, promovendo uma comunicação mais elaborada.

A musicoterapia é muito mais do que uma simples técnica terapêutica; é uma prática profundamente enraizada na experiência vivida, na evidência e na relação afetiva entre terapeuta e cliente. 

 

Ao integrar dimensões emocionais, sociais, cognitivas e motoras, a prática permite que a pessoa integre a sua própria identidade, promovendo um processo de desenvolvimento e comunicação que vai para além das palavras. 

 

O relato do caso de Pedro ilustra como, através da intervenção musical, é possível transformar estados de tensão e desordem em momentos de expressão, ritmo e conexão. Ao associar os princípios da teoria de Daniel Stern, percebe-se que a transformação proporcionada pela musicoterapia reflete o mesmo processo teórico de desenvolvimento do self, em que a sintonia e a interação são fundamentais para a construção de uma identidade integrada.

 

Em resumo, a musicoterapia é uma abordagem fundamentada numa metodologia sólida, que promove o bem-estar e o autoconhecimento, valorizando a experiência individual da relação e da comunicação, seja ela verbal ou não verbal."

 

Neste enquadramento, pode-se considerar que a essência do ser humano reside na sua constante relação com o mundo, sempre a comunicar e a expressar algo. 

 

A prática da musicoterapia, ao explorar a experiência sonora e musical, oferece um modo de integração relacional que valoriza os aspetos psicoafetivos e as capacidades expressivas e criativas do indivíduo. 

Desta forma, o processo terapêutico não só facilita o desenvolvimento pessoal, como também promove a descoberta, alimenta a curiosidade e abre caminho para a criação contínua da identidade e o fortalecimento das relações interpessoais.


Bibliografia


  • Smeijsters, H. (2005). Sounding the self: Analogy in improvisational music therapy. Gilsum, NH: Barcelona Publishers;
  • Stern, D. N. (1985). The Interpersonal World of the Infant: A View from Psychoanalysis and Developmental Psychology. New York: Basic Books;
  • Stern, D. N. (2010). Forms of Vitality: Exploring Dynamic Experience in Psychology, the Arts, Psychotherapy, and Development. Reino Unido: OUP Oxford;
  • Wigram T. Pedersen I. N. Bonde L. O. . ( 2002 ). A comprehensive guide to music therapy: Theory, clinical practice, research and training . London : Jessica Kingsley.

Exemplos de pesquisa: #psicologia, #terapiadafala, ansiedade, voz
Por Ana Catarina Silva, Terapeuta da Fala no Espaço Crescer 9 de abril de 2025
Na face inferior da língua existe uma pequena membrana, denominada por freio ou frénulo lingual, que se liga ao soalho da boca.
Por Patrícia Primo, Terapeuta da Fala no Espaço Crescer 4 de dezembro de 2024
 “Se perdesse todas as minhas capacidades, todas elas menos uma, escolheria ficar com a capacidade de comunicar porque com ela depressa recuperaria tudo o resto” Daniel Webster
Por Zelia Fernandes 9 de outubro de 2024
Um Acidente Vascular Cerebral (AVC) provoca alterações na pessoa que sofreu o problema, mas também nas dinâmicas familiares e profissionais. A linguagem oral, escrita e não verbal ficam frequentemente afetadas após este episódio.
Ver Mais